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Quando a solitude se transforma em solidão


Domingo, 21 de setembro de 2025, acabo de voltar da Chácara do Edgar. Foram quase 4 dias de companhia rara: risos, cuidados, carinhos, a presença de Edgar, Jaciara e dona Nilza. Um reencontro íntimo, demorado demais. Agora, deitado, sinto o peso do corpo exausto, a mente em turbilhão, o castigo silencioso da quebra de rotinas. Eis a inflexibilidade que me acompanha: pernas que balançam sozinhas, dedos que se prendem em movimentos repetitivos, a “pinça” entre indicador e polegar. Sinais de que preciso parar, respirar fundo e desacelerar.

É nessas pausas de emergência que me deparo com um dilema antigo: a linha tênue entre solitude e solidão. Duas palavras tão próximas, mas que, no meu viver, carregam abismos diferentes.


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Solitude: Para mim, é estar só em paz com minhas rotinas, no conforto das tarefas que regem o dia a dia, na segurança dos horários definidos. É cozinhar apenas para mim, maratonar séries, brincar com a Luna nos dias e locais de sempre, escrever linhas soltas antes de dormir. É o silêncio que regula e organiza, não o vazio que machuca, mas confesso: minha solitude não é virtude poética, é construção terapêutica, trabalho árduo em consultório e em esquemas lógicos e emocionais.


Solidão: É quando esse mesmo estar só se inverte sem aviso. O que antes era refúgio, torna-se peso. O que era paz, vira ausência. Um silêncio que já não consola, mas acusa. Surge a pergunta cortante: onde estão os meus? Qual é o meu lugar no mundo coletivo? A solitude é escolha; a solidão, condenação.


Na última semana, não senti essa virada sutil. A paz do meu espaço interno transformou-se no estrondo silencioso do vazio, dias de crises, choro e raiva. Então, quando cheguei no limite de conseguir conviver comigo mesmo, procurei refúgio nos meus próximos (minha rede de apoio afetuosa e presente), ainda que com o desgaste das arrumação das malas, da viagem planejada ao milímetro, da adaptação da rotina por causa da minha pequena de quatro patas. Até mesmo antes de ir, já me preocupava com o retorno — como se a volta fosse mais importante que a ida.


Ouço muitas vezes:—Você é chato demais! Está indo se divertir e entra em pânico. Então nem vá!


Mas como explicar que, para quem vive fora do espectro, que essa preparação é prazere para mim, é sobrecarga e exaustão?


Durante semanas, viver só é natural. As visitas rareiam, os contatos se limitam ao trabalho, à terapia semanal, as trocas de mensagens virtuais rápidas — e está tudo certo. A solitude é fértil: séries, leituras, jogos, escrita, reflexões, passeios com a Luna. E, ao final do dia, permitir que saudades e dores se acomodem até que o sono, com ajuda de remédios, me leve de volta ao ritmo.


Mas, de repente, o que me sustentava começa a rachar. A série perde a graça, o jogo desgasta, o livro que me empolgava já não interessa, a escrita emperra (perda severa de hiperfocos positivos). O tempo reservado à leveza e auto regulação é invadido por pensamentos intrusivos: "talvez eu mereça mesmo ficar sozinho; talvez eu seja estranho demais para ser amado. E é aí que tudo se quebra — a solitude vira solidão.


As medicações falham, a terapia se torna ringue, a fala da Dra. Jéssica vira eco sem resposta. O afastamento se instala: dos amigos, das redes, de mim. Declaro o meu caos.

Sei, pela experiência, que esse processo pode durar, dias. semanas, às vezes meses. Até que, esgotado, peço ajuda — mesmo sem saber pedir. Só então me permito desmontar as defesas, e a terapia volta a ter efeito.


Pouco a pouco, a vida recomeça: retomo a série esquecida, reinicio o jogo, releio as páginas, escrevo outra vez. O sono retorna, e com ele, o corpo descansa.


E percebo, uma vez mais, que essa transição não é culpa de ninguém. As pessoas continuam ali, cada uma com suas lutas. Não cabe exigir que me resgatem. O caminho de volta à solitude exige que eu participe, mesmo com apoio ou intervenção.


Nos grupos e comunidades que abordam o TEA, vejo muitos relatos como o meu: culpas lançadas ao mundo, exigências de resgates mágicos. Tento compartilhar o que aprendo — que dor nenhuma deve ser desculpa para afastar quem nos quer bem, mas que também não podemos não podemos nos culpar, buscar ajuda para regulação, seja com a família (Nota mental e pessoal: me soa "estranho" ou "desconhecido"), os amigos e, principalmente com especialistas.

É preciso lembrar: o autismo é considerado deficiência, onde precisamos nos conscientizar e parar de tratá-la como um dom, superpoder, diferencial, superdotação entre outras.


Nos custa muito caro, em diversos aspectos, viver dentro do Transtorno do Espectro Autista, muita luta já aconteceu e continua acontecendo para nos garantir direitos, começando com o reconhecimento pela Lei  (https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12764.htm), tema para um outro momento.


Vamos aprender entender nosso prazer de estar sós e entender quando estar consigo mesmo se torna um fardo.  


A solitude pode ser jardim, a solidão, deserto. O segredo está em perceber a hora em que um começa a se transformar no outro.


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Sobre mim

Sou um homem de 47 anos, autodidata, que cresceu sem estrutura famíliar e sem oportunidades de estudo, mas construiu sozinho uma carreira sólida em tecnologia. Vivi décadas dentro do espectro autista sem diagnóstico, sem tratamento e sem medicação. Hoje, acompanhado apenas da minha cachorra, compartilho minhas experiências para transformar dor em aprendizado e ajudar outras pessoas que vivem no TEA a encontrarem caminhos de acolhimento, força e pertencimento.

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