top of page

O fone, o mundo e eu ...

Atualizado: 8 de jul.

Existir no mundo nunca me pareceu algo simples. Para alguns, acordar, se arrumar, trabalhar, rir em uma roda de amigos, passar horas em ambientes cheios, cheios de sons, de vozes, de luzes... tudo isso é apenas parte do cotidiano. Um cenário comum, previsível, quase automático.

Para mim, nunca foi. E talvez nunca seja, viver exige de mim um esforço que, às vezes, beira o sobre-humano, focar, filtrar, selecionar, ignorar ruídos, movimentos, cheiros, luzes, conversas cruzadas, pedidos simultâneos, olhares que pressionam, ambientes que colapsam meus sentidos.


É uma guerra invisível.


Ninguém vê.


Ninguém percebe.


Mas meu corpo sabe, minha mente sente e minha alma se encolhe, tentando não transbordar.

ree

Lembro que, na infância, criei meus próprios refúgios. Quando o recreio parecia um campo de batalha sensorial, eu me escondia na sala, desenhando. Desenhava as mesmas coisas, traço sobre traço, como se aquele movimento repetido criasse uma bolha onde o barulho do mundo não pudesse me alcançar. Era meu abrigo. Minha zona segura. Meu jeito — meio torto, meio certo — de seguir.

Cresci e o mundo não ficou mais silencioso. Nem menos intenso. Então aprendi a carregar, pendurado no pescoço, um pedaço do meu próprio silêncio: o fone de ouvido.

Ele é meu melhor amigo. Meu escudo invisível. Uso no trabalho, na rua, no mercado, no bar — sim, as pessoas olham estranho. Algumas acham falta de educação. Outras, arrogância. Poucas entendem que, sem ele, o mundo grita tanto que chega a doer na pele.

Me tornei dependente? Talvez, mas, me diga: quem não é?Tem quem dependa de maquiagem para se sentir inteiro. Tem quem dependa de um perfume, de um relógio, de uma roupa específica, de uma mania, de uma rotina.

Meu fone me dá exatamente isso: qualidade de vida. E, muitas vezes, a possibilidade de simplesmente existir sem desmoronar.

Não pense que não tento, tenho me desafiado, com terapia, com remédios, com muita preparação mental, a sair sem ele. Baladas, bares, encontros. Antes de colocar os pés na rua, passo horas ensaiando cenários na cabeça: “Será que lá tem um espaço aberto? E se eu precisar fugir do barulho? Tem um cantinho mais silencioso? Um fumódromo? Um corredor vazio?”

A diversão, para mim, começa muito antes da festa. E o cansaço também. É um cansaço que não se mede nas pernas, mas na mente.

O que importa hoje é que eu sei onde estão os meus limites, sei até onde posso ir sem me machucar, sem me violentar, sem me colocar em risco. Não é para provar nada a ninguém — nunca foi. É apenas para, quem sabe, experimentar um pouco da vida que, tantas vezes, me foi negada.

Pelas circunstâncias, pelo desconhecimento, pela falta de acolhimento. E, às vezes, por mim mesmo, que precisei me proteger tanto, que acabei me privando de viver certas coisas.

E assim sigo, entre o barulho e luzes do mundo e o silêncio dos meus fones, tentando, dia após dia, existir de um jeito que me caiba.

Comentários


Sobre mim

Sou um homem de 47 anos, autodidata, que cresceu sem estrutura famíliar e sem oportunidades de estudo, mas construiu sozinho uma carreira sólida em tecnologia. Vivi décadas dentro do espectro autista sem diagnóstico, sem tratamento e sem medicação. Hoje, acompanhado apenas da minha cachorra, compartilho minhas experiências para transformar dor em aprendizado e ajudar outras pessoas que vivem no TEA a encontrarem caminhos de acolhimento, força e pertencimento.

Fale Comigo

WhatsApp

55 11 - 91499-5260 

Copyright © 2025 Todos os direitos reservados a Meus Espectros PRODUZIDO CRIADO E DESENVOLVIDO, com EXPRESSÃO SITES

Espressão Sites
bottom of page