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Autismo, Internet e os Limites que Esquecemos

Nas últimas décadas, a Internet se consolidou como uma das maiores invenções humanas. Tornou-se, de certa forma, nosso segundo cérebro: um repositório vivo de pesquisas, dúvidas, conhecimento, memórias, criações e expressões. Um espaço em que algumas poucas palavras digitadas podem nos transportar para universos inteiros de possibilidades.

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Esse avanço, no entanto, não aconteceu de forma isolada. A história da Internet e da computação está profundamente ligada a pessoas neurodivergentes que, muitas vezes sem diagnóstico formal na época, foram pilares de uma revolução intelectual. Entre os nomes mais notáveis está Alan Turing, Ph.D., considerado o pai da ciência da computação teórica e da inteligência artificial. Turing, brilhante e visionário, não apenas concebeu ideias que moldaram o mundo moderno, como também desempenhou papel fundamental durante a Segunda Guerra Mundial, ao decifrar códigos nazistas que mudaram os rumos do conflito.

Apesar de sua genialidade, enfrentou perseguições cruéis devido à sua sexualidade e viveu um contexto social de extrema marginalização. Ainda assim, deixou um legado que sustenta a era digital em que vivemos. Quando refletimos sobre Turing e tantos outros, percebemos que a Internet, antes mesmo de ser um espaço de massa, já nascia da mente de pessoas “fora do padrão”, cujas formas diferentes de pensar permitiram que o impossível se tornasse realidade.

Avançamos. Criamos a inteligência artificial. Demos voz a milhões de pessoas que antes eram silenciadas. Movimentos sociais ganharam força inédita graças às redes. Minorias conquistaram vitórias e visibilidade. Histórias individuais se tornaram coletivas. As trocas de experiências, a formação de redes de apoio e de defesa ampliaram-se a níveis impensáveis em séculos anteriores.

Mas, no meio desse crescimento vertiginoso, esquecemos algo crucial: os limites.

A exposição se tornou regra. A busca por visibilidade muitas vezes passou a se sobrepor à proteção da integridade, ao cuidado com a própria saúde mental e ao respeito à privacidade. Perdemos o senso de autocontenção: compartilhar tudo virou hábito, quase compulsão. Muitas vezes, em nome da “conscientização” ou do “engajamento”, acabamos naturalizando práticas que não apenas nos colocam em risco, mas também fragilizam ainda mais aqueles que já vivem em situação de vulnerabilidade.

Falando especificamente sobre o autismo e seus espectros, é interessante observar como o tema emergiu na Internet ao longo do tempo. No início dos anos 2000, os primeiros blogs e fóruns começaram a tratar do assunto. Ainda de forma tímida e quase clandestina, eram espaços de desabafo, de dúvidas e de partilha entre poucos. Para muitos adultos, falar em autismo era tabu. O diagnóstico era visto como uma sentença social, capaz de arruinar relações familiares, afetivas e até profissionais. Além disso, havia a confusão frequente com outros transtornos psiquiátricos, como a esquizofrenia. O que predominava naquela época era a mistura de curiosidade, medo e pouco entendimento real.

Cerca de dez anos depois, a segunda onda de visibilidade veio com o YouTube e os influenciadores digitais. O assunto passou a ser discutido em maior escala, sem tanto receio. Surgiram canais e perfis dedicados ao tema, mas ainda faltava respaldo científico e médico. O tom era, muitas vezes, voltado às consequências, ao cotidiano, às dificuldades práticas — raramente às causas, às bases clínicas ou às estratégias de intervenção adequadas. Ainda assim, esse período foi importante para quebrar silêncios e abrir novas janelas de diálogo.

Hoje, vivemos uma terceira fase: o autismo está em alta. Tornou-se pauta de programas de TV, livros, influenciadores, palestras, congressos e até marketing. Virou um “tema do momento”, o CID “hypado” da atualidade. E, sim, há um lado positivo nisso: essa exposição trouxe avanços em políticas públicas, acesso à saúde, desenvolvimento de terapias, revisão de patentes de medicamentos e, sobretudo, maior conscientização de que o autismo existe em diferentes intensidades e formas.

Mas — e aqui vem a reflexão mais incômoda — esse movimento também trouxe um lado perverso. Ao mesmo tempo em que ampliou a discussão, abriu espaço para desinformação, capacitismo e exploração comercial. Multiplicaram-se medicamentos “milagrosos” sem comprovação científica, tratamentos que prometem “cura”, religiões que afirmam fazer o TEA “desaparecer”, cursos sem respaldo médico ou legal e uma indústria de serviços e produtos que se aproveita do desespero de famílias e adultos atípicos em busca de respostas.

A linha entre conscientização e exploração é cada vez mais tênue. Não é raro vermos vídeos de crianças e adultos em crises sensoriais sendo expostos publicamente, em momentos de total fragilidade, sob o pretexto de “educar a sociedade”. O que se gera, muitas vezes, não é empatia, mas dó, julgamento e reforço de estigmas. O TEA, em muitos casos, virou mercadoria: gourmetização de diagnósticos, testes rápidos por inteligência artificial, terapias vendidas como panaceias universais.

Isso me leva a refletir sobre o meu próprio manejo pessoal diante das crises e vulnerabilidades. Ao longo do tempo, desenvolvi algumas regras íntimas, que funcionam como pontos de ancoragem:

  • Desconectar das redes sociais durante crises.

  • Acionar minha rede de apoio, quando possível.

  • Procurar atendimento médico quando os sintomas extrapolam meu controle físico e emocional.

  • Evitar postar sobre momentos de fragilidade ou buscar suporte em estranhos.

  • Usar medicação apenas dentro da prescrição e necessidade definida com acompanhamento profissional.

  • Não descontar frustrações em posts ou grupos, evitando gerar riscos e gatilhos em terceiros.

  • Respeitar os desabafos de outros, sem invalidar suas formas de sentir ou agir.

  • Evitar culpas após crises, entendendo que elas fazem parte do meu processo e que o cuidado inclui o antes, o durante e o depois.

  • Não sair diagnosticando outros com base na minha vivência pessoal.

  • Não compartilhar conteúdos sem antes verificar veracidade e relevância.

Essas medidas parecem simples, mas são fundamentais para manter não apenas minha integridade, como também para evitar reforçar um ciclo de desinformação e exposição que já é, por si só, pesado demais.

Outro ponto que me preocupa, e que cresce nas redes sociais, é o de autistas invalidando outros autistas. O velho discurso do “se comigo não é assim, então com você também não pode ser”. Isso é cruel e profundamente equivocado. A própria palavra espectro foi incorporada à nomenclatura justamente para enfatizar que não há dois autistas iguais. Cada vivência é única, cada desafio é singular. Essa falta de empatia interna corrói nossas próprias redes de apoio e nos fragmenta.

Esquecemos o quanto é alto o índice de suicídio entre pessoas que vivem com o transtorno do espectro autista. Falta de empatia, acolhimento, isolamento, desmerecimento, descrença, abandono afetivo e emocional, invalidação — tudo isso pode ser reforçado por discursos errados e aumentar ainda mais esse índice.

Segundo pesquisa do Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA (CDC), em 2014, a taxa de suicídio aumentou em 24% em comparação com 1999 (passando de 10,5% para 13%). Entre jovens de 15 a 29 anos, encontram-se as taxas mais altas. No caso do autismo, especialmente o nível 1 (popularmente chamado de leve), o suicídio é nove vezes mais frequente do que entre jovens sem autismo. Além disso, 28% dos autistas de nível 1 (pouco suporte funcional) já pensaram, ou pensam constantemente, em tirar a própria vida. São dados alarmantes. Ao mesmo tempo, especialistas afirmam que 96,8% dos casos de suicídio podem ser evitados quando há investimento em prevenção. (Fonte: Canal Autismo)

Diante disso, a pergunta que não cala é: como podemos cobrar da sociedade e do governo políticas humanas e estruturadas para o cuidado de pessoas no espectro se nós mesmos ainda praticamos exposição desnecessária, falta de acolhimento e invalidamos as vivências uns dos outros?

Se queremos transformação real, precisamos começar pela forma como tratamos nossos próprios pares. Precisamos resgatar a empatia, a contenção, a escuta e o respeito às diferentes formas de existir dentro do espectro. Porque, sem isso, toda política externa será apenas paliativo — quando o verdadeiro cuidado precisa nascer de dentro.

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Sobre mim

Sou um homem de 47 anos, autodidata, que cresceu sem estrutura famíliar e sem oportunidades de estudo, mas construiu sozinho uma carreira sólida em tecnologia. Vivi décadas dentro do espectro autista sem diagnóstico, sem tratamento e sem medicação. Hoje, acompanhado apenas da minha cachorra, compartilho minhas experiências para transformar dor em aprendizado e ajudar outras pessoas que vivem no TEA a encontrarem caminhos de acolhimento, força e pertencimento.

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